Entenda por que museus estão devolvendo artefatos saqueados para locais de origem

Via: Istoé

Por: RENAN ALEXANDRINIi

Uma estátua Nkisi Nkonke do chefe Ne Kuko, fotografada durante visita da imprensa à exposição “Rethinking Collections” (Repensar as coleções) no Museu Africano de Tervuren, a noroeste de Bruxelas, 17 de janeiro de 2024 – AFP

Entre os itens que serão emprestados para a Gana está uma espada Mponponso de 300 anos, que era utilizada em cerimônias de juramento, além de um cachimbo de ouro da paz, todos levados durante a Terceira Guerra Anglo-Ashanti, em que os britânicos buscavam estabelecer controle na região. São contabilizados 32 artefatos que estão em Londres, e serão encaminhados ao Museu do Palácio Manhyia, em Kumasi, durante seis anos.

São inúmeros os casos de objetos saqueados de várias regiões do mundo durante o período colonial comandado pelas potências ocidentais da época, o que impede que muitos povos tenham acesso a itens que representam a sua própria história. Entretanto, países europeus e museus demonstram relativo interesse em devolver ou emprestar partes do acervo roubado novamente aos territórios de origem.

Em dezembro de 2017, o presidente da França, Emmanuel Macron, discursou em Burkina Faso prometendo retornar itens roubados da África para os territórios de origem, e que tal prática seria uma das principais prioridades do governo durante cinco anos. Em 2021, o país devolveu 26 artefatos ao Benim, o que atraiu mais de 200 mil pessoas a verem uma exposição gratuita da coleção reavida no Palácio Presidencial do país, segundo o New York Times.

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Motivo das devoluções

Paulo Garcez Marins, docente do Museu Paulista da USP, conhecido como Museu do Ipiranga, explica que as devoluções passaram a ocorrer após a disseminação de uma consciência internacional de que obras de arte e objetos culturais roubados não são propriedade legítima dos países que praticaram tal atividade, debate que se instaurou após artefatos roubados pela Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial serem devolvidos.

“É também uma decisão de realizar essas devoluções como forma de ampliar relações políticas entre países europeus e africanos”, complementa Paulo Garcez Marins, esclarecendo que, ao receberem novamente os artefatos, as nações possuem uma recuperação do próprio patrimônio cultural. “Muitas vezes há casos de objetos de caráter religioso e que fazem parte da organização espiritual de vários desses povos.”

Apesar de muitos itens terem sido saqueados por tropas de governos europeus, o docente do Museu Paulista da USP esclarece que a retirada de artefatos por missionários e expedições científicas também pode ser entendida como compulsória. “São outros agentes que retiravam esses acervos em uma condição de poder assimétrica, ou seja, ficaria difícil para esses povos recusar ceder objetos.”

Ainda de acordo com o especialista, o mercado ilegal de itens estimula a circulação de artefatos obtidos de forma não legítima até hoje. “Nos últimos 12 meses foram frequentes as devoluções de acervos arqueológicos para o Egito, Iraque, Itália e Grécia, de obras que foram comercializadas nos últimos 30 ou 40 anos de maneira ilícita, frutos de roubos ou de escavações arqueológicas sem autorização.”, completa Paulo Garcez Marins.

Há quem afirme que determinadas sociedades que reavêm tais objetos não teriam capacidade para preservá-los adequadamente, o que para o docente do Museu Paulista da USP, é uma posição intolerável. “Mesmo países que já fizeram grandes esforços para organizar a chegada dos acervos, como a Grécia, que construiu um novo museu em Atenas, não receberam a devolução”, completa o especialista, em uma referência ao caso dos Mármores de Elgin.

Coleções brasileiras no exterior

Em junho de 2023, o governo brasileiro anunciou que 600 itens indígenas que estavam na França de forma irregular poderão ser devolvidos ao nosso País. Muitas das peças ficaram expostas no Museu de História Natural de Lille. Entre os objetos estariam troncos de madeira usados pelos Kamayurá, do Xingu, durante um ritual de despedida dos mortos chamado de Kuarup, além de uma máscara dos Tapirapé.

Também no ano passado, o Museu Nacional da Dinamarca anunciou que irá doar ao Brasil um Manto Tupinambá, confeccionado com penas vermelhas de Guará, uma ave do litoral da Bahia, e que possui cerca de 1,80 metro de altura. O objeto teria sido obtido por holandeses durante ocupação do nordeste brasileiro e estava em Copenhague desde, pelo menos, 1699. Existem apenas outros 10 artefatos similares no mundo.

A artista e pesquisadora Anita Ekman explica que muitos dos artefatos indígenas foram levados do Brasil durante expedições científicas do século XIX. “Muitas vezes as pessoas não associam que o imaginário que o mundo tem até hoje das florestas brasileiras e seus povos tem relação com a criação dessas coleções”, esclarece, complementando que muitas dessas explorações possuíam bases racistas.

Importância da devolução aos Povos Originários

Anita Ekman constata que a maior parte das coleções arqueológicas indígenas no exterior pertencem aos Marajoaras, sociedades que viviam na Ilha de Marajó, no Pará, ainda antes da colonização. “Há uma luta muito grande dessas comunidades pelo que chamamos de ‘rematriação’”. O termo é utilizado pela pesquisadora no intuito de afastar a ideia de que tal discussão é entre pátrias, e que na realidade seria uma reivindicação dos povos originários para terem a oportunidade de demonstrar a sua realidade através do patrimônio imaterial.

“Existem muitas coleções marajoaras que estão em outros estados do Brasil. A discussão sobre a devolução desses objetos também é dentro do próprio país”, declara Anita Ekman. Paulo Garcez Marins conta que, em 1986, o Museu Paulista da USP retornou uma machadinha ao povo Krahô, no que havia sido entendido pela instituição na época como uma posse ilegítima do artefato.

De acordo com Anita Ekman, o imaginário que tais sociedades possuem sobre os povos originários do Brasil foram criados com base nesses artefatos, o que torna a questão mais profunda. “Essas comunidades indígenas precisam não só negociar o retorno de objetos sagrados, que é importante, mas principalmente que a sua voz entre nessas instituições que exibem os acervos e mude a visão do mundo”, conclui.

A pesquisadora explica que não foi catalogado o número exato de quantos itens de origem indígena brasileira estariam espalhados pelo mundo, e que muitos desses objetos não estão em exposições e permanecem guardados em museus. Anita Ekman conta que por meio de um projeto, foi possível fazer um mapa de artefatos do povo marajoara, exclusivamente, levados para vários lugares do planeta.

Confira o mapa:

As interrogações em vermelho correspondem à falta de informação sobre quem coletou os itens. (Crédito: Cristiana Barreto/Freg J. Stokes)

Ações do governo brasileiro

Para Paulo Garcez Marins, as ações de questionamento de acervos brasileiros mantidos em países europeus ainda estão em fase inicial, em comparação com países como a Grécia, Itália, Egito, Costa do Marfim, Nigéria e Benim, em que tais questões são mais intensas .O especialista cita que o governo possui uma postura bem mais incisiva com coleções paleontológicas, como fósseis, que estariam no exterior

Em comunicado, o MPI (Ministério dos Povos Indígenas) afirmou que em setembro de 2023, estabeleceu um Grupo de Trabalho que deseja restituir artefatos indígenas tirados do Brasil, que duraria apenas 60 dias, mas teve as atividades prorrogadas em dezembro. Segundo a pasta, o processo que levou o acervo do Brasil gerou uma violência histórica à espiritualidade e memória dos povos originários.

“A devolução destes objetos é um processo de justiça no âmbito de direito à memória”, acrescenta o MPI, complementando que irá integrar a articulação de todo o processo de repatriação, institucional e internacional. A pasta ainda cita o Manto Tupinambá, que retornará ao Brasil em 2024, em uma doação por parte do Museu Nacional da Dinamarca, abre caminho para que novas coleções sejam devolvidas.

**Estagiário sob supervisão